sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

A Vaidade e as Formas Jurídicas

A VAIDADE E AS FORMAS JURÍDICAS

Adolfo Borges Filho (*)

Vaidade de vaidades, disse o Eclesiastes; vaidade de vaidades, tudo é vaidade.(Livro do Eclesiastes,1-2).

Inspirei-me em Foucault, mais precisamente no seu livro "A Verdade e as Formas Jurídicas", para batizar este artigo que nada mais é do que um convite à reflexão dirigido aos colegas da área jurídica. A reflexão teria como tema o excesso de formalismo que impregna determinados processos, formalismo esse caracterizado pela dissertação supérflua, pelas citações deslocadas e pelos malabarismos vocabulares inócuos. O processo se transforma, paulatinamente, num calhamaço de difícil manuseio e de cansativa leitura, enfeiando o Direito e emperrando a Justiça. A vaidade, na maior parte dos casos, serve de roupagem à chicana processual, tornando-se o principal instrumento das manobras ardilosas do "grande causídico" na defesa de seu cliente economicamente poderoso.

Não se pode negar a presença da estética no Direito. A petição escorreita, com dizeres incisivos e citações latinas, recheada de jurisprudência recente e retocada com doutrina atualizada, impressiona e é válida. Isso se aplica também ao parecer do Parquet e às decisões judiciais. O excesso de formalismo (ou de narcisismo) se materializa quando páginas e páginas são escritas como se cada uma delas representasse um quadro a óleo que merecesse contemplação e admiração. O processo se transforma em pinacoteca; infelizmente, de quadros falsos... A preocupação se volta para a forma; o conteúdo passa ao segundo plano porque efetivamente inexiste. Nesse "jogo estético" corre-se o risco de repetir o direito feudal...FOUCAULT descreve o sistema de provas vigente na Borgonha do século XI:

Havia em segundo lugar provas de tipo verbal. Quando um indivíduo era acusado de alguma coisa- roubo ou assassinato- devia responder a esta acusação com um certo número de fórmulas, garantindo que não havia cometido assassinato ou roubo. Ao pronunciar estas fórmulas podia-se fracassar ou ter sucesso.Em alguns casos pronunciava-se a fórmula e perdia-se. Não por haver dito uma inverdade ou por se provar que havia mentido, mas por não ter pronunciado a fórmula como devia. Um erro de gramática, uma troca de palavras invalidava a fórmula e não a verdade do que se pretendia provar. A confirmação de que ao nível da prova só se tratava de um jogo verbal, é que, no caso de um menor, de uma mulher ou de um padre, o acusado podia ser substituído por outra pessoa. Essa outra pessoa, que mais tarde se tornaria na história do direito o advogado, era quem devia pronunciar as fórmulas no lugar do acusado. Se ele se enganava ao pronunciá-las, aquele em nome de quem falava perdia o processo.1

O processo civil é o campo fértil para as manifestações narcísicas. Até porque o nosso Código de Processo Civil, se mal utilizado, pode levar o vaidoso ao clímax do formalismo. Quanto mais complicada a questão, quanto mais dinheiro estiver em disputa, maior número de folhas terá o feito. Abundam as citações, as digressões, as explicações, as interpretações, as empolações. Qualquer interlocutória merece um agravo. O mandado de segurança é outra opção estratégica. E o parecer encomendado a um grande jurista? Como diz Roberto Lyra Filho no seu grandioso livrinho "O que é Direito": Catar frases é um passatempo de quem só faz negócio com assinatura de avalista e vive procurando uma firma célebre e desprevenida para as suas promissórias. Um pensamento, uma filosofia é um organismo em movimento, uma resposta intelectual aos estímulos duma práxis e cada noção, conceito, proposição têm de ser, não pinçados mas inseridos no movimento da obra.2 Fato é que a decisão final parece inalcançável. Sofre aquele que possui o bom direito porque num determinado momento, cansado da espera e sem entender as explicações de seu advogado, numa atitude de defesa psicológica, começa a achar que não tem razão...O bom direito se perdeu no labirinto processual...

E por detrás dessa vaidade geralmente se esconde a astúcia (para não dizer malandragem) do chamado "bom advogado". Se o direito não beneficia seu cliente o melhor é encher o processo de folhas. Ele joga com o tempo de leitura e de contestação da parte contrária. Conta com o cansaço de um juiz assoberbado de trabalho que levará horas para digerir aquele emaranhado de postulações. E esse cansaço pode dar início aos célebres despachos procrastinatórios como o "diga o autor", "fale o réu sobre os documentos", "diga o MP", etc. E o MP, também assoberbado, pode dar início a requerimentos de diligências, também dilatórias...Pode ser que o juiz ou o membro do Parquet, agravando ainda mais o quadro protelatório, resolvam entrar no jogo da vaidade elaborando decisões e pareceres do tamanho de monografias, consumindo dias para trazê-los à vida e deixando atrasar outros feitos "menos importantes". TOURINHO FILHO, ao analisar os requisitos da sentença, faz a seguinte colocação: "Não se esqueçam os Juízes que a sentença é ato de autoridade e não dissertação de concurso, adverte Manzini, e, por isso mesmo, devem os Magistrados evitar as disquisições teóricas, rebuscadas, de citações inoportunas e discussões mais ou menos acadêmicas (Tratado, cit., v.4, p.493)."3 Trágico é quando essas autoridades encampam a mentira e se tornam co-autoras da injustiça.

Interessante notar que esse jogo estético é discriminatório e antidemocrático, concentrando-se, especialmente, nos processos que envolvem partes de poder aquisitivo alto. Tanto assim que em sede penal, onde a clientela predominante se constitui de pobres, predomina a concisão, a laconicidade e o desenfeite. E o processo se torna rápido e contundente. A vaidade está presente mas de molde a não atrapalhar o desenrolar do feito: ela é apenas cerimonial. Quando promotor criminal arrisquei o seguinte verso:

"O julgamento começou...
Não é o final,
aquele da Bíblia.
É o aniquilamento paulatino
de um desvalido.
Observem a pose do juiz, do promotor,
do advogado de defesa.
Que cenário bonito o recinto ostenta!
Bem acima do juiz pende um crucifixo,
aflito,
representando a grande contradição da
chamada Justiça.
O réu é um ladrão desconhecido,
que aguarda mais um veredicto.
Ele se "humilha" porque acredita,
na boa vontade do magistrado.
A humilhação é apenas aparente
porque do crime,
não se penitencia.
Toda aquela encenação não faz sentido.
Dos atores daquela peça,
o papel autêntico é o do ladrão.
Ele está sendo o que efetivamente pode ser.
Não teve opção porque sua "escolha" foi dirigida.
Ele aguarda a sentença
que significa simplesmente,
um atestado de permanência,
naquela existência...
imposta, pré-fabricada,
pelo esquema.
O Código Penal é a Bíblia
que ele conhece e respeita,
porque o define como "gente".
Juiz, Promotor, Advogado de Defesa,
cuidado com o Sistema!"

E o cuidado principal que o magistrado deve ter é o de não se transformar naquele "juiz asséptico" de que fala Zaffaroni e que a juíza Maria Lucia Karan muito bem conceituou: o juiz técnico, neutro, que decide de forma supostamente imparcial e, portanto, reproduz a desigualdade inerente ao direito da sociedade capitalista, sendo, consequentemente, também um primeiro passo no sentido da produção de uma jurisprudência comprometida com os interesses das classes capazes de construir a nova sociedade e com a perspectiva de realização dos direitos humanos.4

Quando o criminoso é do colarinho branco, a realidade processual se transforma; corrupção e tráfico de influência se fundem numa fórmula explosiva. Na fase investigatória, o sonho dourado dos advogados inescrupulosos é que a polícia se transforme na filial de seus próprios escritórios, produzindo as testemunhas de viveiro e as perícias de encomenda. É preciso afastar os policiais honestos e combater o poder investigatório e fiscalizatório do Ministério Público, distorcendo a própria Constituição Federal, para que a defesa criminosa não seja surpreendida com a descoberta da verdade. Na fase processual, propriamente dita, entram em cena as nulidades ,dando ensejo às preliminares de mérito. Os habeas corpus são impetrados no afã de se conseguir a liberdade provisória do "bacana injustiçado" ou mesmo o trancamento da ação penal por ausência de “justa causa”. E a punição que a sociedade espera vai se distanciando e, ao cabo de tudo, assoma como inexistente. Na maioria dos casos, a vaidade mascara a hipocrisia. Esse excesso de formalismo esconde, na verdade, uma mentira insustentável, uma hipocrisia abominável, própria do sistema capitalista selvagem ínsita ao conteúdo substancial da demanda. NIETZSCHE, em "Assim Falou Zaratrusta", escreveu:

E esta hipocrisia foi a pior que encontrei entre eles: que também aqueles que mandam fingem as virtudes daqueles que servem.
"Eu sirvo, tu serves, nós servimos" - assim reza também, aqui, a hipocrisia dos dominantes -e ai quando o primeiro senhor é somente o primeiro servidor!


Esse triste modelo de prática forense , que já se consolidou no nosso país e que em sede penal pode gerar a impunidade, colabora, de modo decisivo, para o descrédito da Justiça. A vaidade, traduzida no formalismo inútil, é apenas mais uma arma na suja batalha que o "bom advogado" trava para aumentar o espaço de poder de seu cliente endinheirado. A ética é posta de lado. O importante é "vencer". Jean-Marie Guéhenno, no seu ensaio "O Fim da Democracia", afirma que na sociedade capitalista, A profissionalização dos interesses dilui a política numa multiplicidade de oposições particulares.5 E O dever do advogado é sempre o de obter, em qualquer contrato, o máximo. A outra parte não entenderia se fosse diferente, e em alguns casos, o juiz poderia chegar a acusar de conluio e concorrência restrita qualquer empresa que não tenha forçado a obtenção de todos os seus direitos.6 Apresenta, em seguida, a seguinte crítica:

Na verdade, não existe nada de mais intolerável do que aquilo que os juristas chamam de "conflito de interesses" e crime de conivência, pois derrubam a máquina social: se o indivíduo pertence, ao mesmo tempo, a duas esferas de interesse, toda aquela equação de forças que tem por objetivo permitir o ótimo social é posta em cheque. Há de se obedecer, em cada ação na vida, a uma lógica unidimensional; Condorcet e Arrow, aliás, mostraram que essa é a única forma compatível com a agregação das preferências individuais.7


Comecei este artigo citando o Eclesiastes e o encerro com Fernando Pessoa, poeta maior de nossa língua e um grande incentivador de reflexões:

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

(*)Adolfo Borges Filho é Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e Professor de Direito Processual Penal da PUC/RJ.
1 Michel Foucault, "A Verdade e as Formas Jurídicas",pág.46,"Departamento de Letras da PUC/RJ," 1991.
2 Roberto Lyra Filho, "O que é Direito", pág.111, "Editora Brasiliense", 1982.
3 Tourinho Filho, "Processo Penal", 4º vol., pág. 181, "Editora Saraiva", 1990.
4 Maria Lúcia Karam, "De Crimes, Penas e Fantasias", pág.111, "Editora Luam", 1991.
5 Jean-Marie Guéhenno, "O Fim da Democracia", pág. 35, "Editora Bertrand Brasil S.A.", 1994.
6 Ibidem, pág. 36.
7 Ibidem, pág. 36.

Um comentário:

  1. O que se pode esperar de um país que tem um presidente na Suprema Corte que não está nem aí para ética? Mas, essa história não é nova. Sempre foi assim... basta volver os olhos para história da humanidade. Poder, vaidade, corrupção..Mas, a Palavra é viva. A quem mais é dado, mais será cobrado. Somos mais do que um corpo... e é certo que a cobrança vai ser severa. A cada dia mais me convenço que o Reino de Cristo é de fato para os humildes.

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