quinta-feira, 27 de setembro de 2018

LE NOUVEL OBSERVATEUR - "A necessária judicialização da política brasileira" (artigo traduzido por Julia Mourri e publicado em 21 de março de 2016 ) 

A NECESSÁRIA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA BRASILEIRA

                                                                                                * Adolfo Borges Filho


Durante o segundo mandato presidencial da atual presidente Dilma Rousseff, as investigações conhecidas pelo nome de “lava jato”, em curso na Justiça Federal do Estado do Paraná, foram tomando força, ficando claro o rombo financeiro sofrido pela maior empresa do Brasil, a PETROBRAS; e, também, o envolvimento de grandes empresas privadas na corrupção. Restava saber que políticos estariam por detrás do escândalo.

Com a reeleição apertada da presidente Dilma, ficou claro que a economia brasileira estava fragilizada e, apesar de a presidente colocar a culpa nos “fatores externos internacionais”, constatou-se que muito dinheiro havia sido desviado da PETROBRAS causando enorme prejuízo nas contas públicas da nação brasileira. Na verdade, a maior corrupção da história de nosso país.

Por ironia do destino, a lei de combate ao crime organizado (Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013), que trouxe a “colaboração premiada” para o nosso sistema jurídico penal, foi sancionada pela própria presidente Dilma Rousseff, fato que possibilitou  à  Justiça  homologar acordos de delação com suspeitos de desvio de dinheiro em operações fraudulentas da PETROBRAS, facilitando a acelerando, sobremaneira, as investigações.  Foi criada na Justiça Federal do Paraná, uma “força tarefa”, composta de Procuradores do Ministério Público e Delegados da Polícia Federal, sob a jurisdição do Juiz Federal Sérgio Moro, para investigar, por etapas, os crimes praticados contra a PETROBRAS.

A denominada “operação lava jato” já está completando dois anos de atividade e quase cem criminosos já foram condenados, graças principalmente à delação premiada. Parte do dinheiro desviado da empresa também foi recuperado. A operação “lava jato” acabou revelando um esquema de corrupção que envolvia políticos ligados não somente ao PT (Partido dos Trabalhadores) mas também a outros partidos da República.

Entretanto, quando a operação “lava jato” alcançou a 24ª fase, começaram a surgir indícios de que o ex-Presidente Lula e seus familiares teriam sido beneficiados, também, por empreiteiras ligadas ao escândalo da PETROBRAS. Discute-se, hoje, se um sítio situado em Atibaia (cidade turística de São Paulo) e um apartamento triplex na cidade do Guarujá (praia famosa do litoral paulista), teriam sido reformados com dinheiro das empreiteiras OAS e ODERBRECHT, sendo que o presidente desta última já foi condenado a quase vinte anos de prisão por corrupção na PETROBRAS.

Dias atrás, o ex-Presidente Lula – apesar de afirmar não ser o proprietário dos imóveis – acabou sendo conduzido coercitivamente para prestar depoimento na Polícia Federal, fato que causou surpresa e comoção nacional. A partir daí, a insatisfação contra o Partido dos Trabalhadores cresceu muito, agravando a crise política e econômica já instalada no país.

Fato é que, como cidadão comum, o ex-presidente pode ser processado e julgado na primeira instância pelo Juiz Sérgio Moro, no Paraná. A última grande manifestação popular que tivemos no último domingo demonstrou o prestígio que o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e o Juiz Sérgio Moro desfrutam hoje perante a sociedade, em todo o país. A presidente Dilma Rousseff, cujo processo de impeachment já se iniciou na Câmara dos Deputados, resolveu convidar Lula para chefiar a Casa Civil, tornando-se, assim, Ministro de Estado e passando a ter foro privilegiado junto ao Supremo Tribunal Federal.  Critica-se justamente essa nomeação repentina porque se, para a presidente a nomeação de Lula tem por finalidade recobrar a confiança no governo, há indícios de que a ida de Lula para o Planalto teria o propósito de tirá-lo da investigação da “força tarefa”, no Paraná, já que passaria automaticamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, por ser Ministro de Estado. Apesar de já ter sido nomeado e tomado posse no cargo, ainda não pode assumir a função por causa de diversas ações propostas justamente contra essa nomeação que reputam fraudulenta. Cabe, agora, ao Supremo decidir mais esse incidente.

O título dado ao presente artigo se justifica porque a Justiça se apresenta, hoje, como uma espécie de “poder moderador e moralizador” no Brasil. Tanto assim que coube ao Supremo Tribunal Federal reexaminar o rito procedimental do processo de impeachment que já foi instaurado ontem pela Câmara dos Deputados contra a presidente Dilma, esclarecendo pontos duvidosos do seu Regimento. E tal providência foi pedida pela própria casa legislativa. Por outro lado, graças ao trabalho incansável da “operação lava jato”, sob o controle efetivo e competente do Juiz Sérgio Moro, é que toda a corrupção perpetrada contra a PETROBRAS veio à tona e acabou enfraquecendo o já frágil governo petista. Finalmente, estamos diante de mais um impasse: a ida de Lula para a chefia da Casa Civil do governo Dilma, como ministro, dependerá da decisão final do Supremo Tribunal Federal. E caso ele seja denunciado pelo Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, o julgamento do ex-presidente será realizado perante a Suprema Corte do país.

Outro ponto a ser observado é que o julgamento do impeachment será feito pelo Senado Federal, no que tange à matéria política. Mas, se no curso do processo, ficar apurado que a presidente cometeu também algum delito previsto na legislação penal, caberá ao Supremo Tribunal Federal julgá-la.

Espera-se que tudo seja apurado o mais rapidamente possível a fim de que o Brasil volte a crescer economicamente. Na verdade, a população brasileira, em sua maioria absoluta, rejeita o “populismo” que resulta do governo de um único partido. As manifestações pacíficas de rua, ocorridas no último domingo, deixam claro essa tendência. Felizmente temos instituições fortes como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal e mesmo o Congresso Nacional que já deu prova de sua independência com a instauração do processo de impeachment. O regime democrático não será, de forma alguma, vilipendiado.

*Adolfo Borges Filho é Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O ÓDIO INÚTIL

O ÓDIO INÚTIL
O ódio inútil só nos leva à destruição. Nutrir infelicidades passadas, ainda que partilhadas com outras pessoas, congestiona o espírito e nos leva a um estágio de desespero que sempre deságua em intempéries no âmago do nosso próprio ser. Aprender a controlar a raiva e a podar os pensamentos regressivos de um passado que já se foi é um dos grandes passos para se alcançar a sabedoria. O ódio inútil destrói antes de tudo a quem os gera. Existe sempre a tendência de procurar alguém ou um animal para projetarmos o nosso rancor. Antes de tomarmos essa atitude insana, o melhor é pararmos, meditarmos e refletirmos sobre as conseqüências maléficas que estamos trazendo para nós mesmos. Ninguém merece o nosso ódio; como corolário lógico nós também não o merecemos. O ódio inútil nos lança numa espécie de círculo cármico interminável e deixa o nosso corpo vulnerável a energias ruins que transitam na atmosfera. Passamos a ser receptores de fluidos negativos e a nossa presença se torna desagradável e poluidora. É preciso averiguar o porquê do ódio inútil porque ele pode significar um sintoma sério de algo que ainda não conseguimos resolver em nós mesmos. Vociferar, esbravejar, lançar pragas ou xingar são manifestações do ódio inútil que infestam ambientes e maltratam pessoas. O Cosmos está precisando de muita paz e a consciência nos diz que devemos meditar sobre o nosso papel nessa construção de um mundo melhor, sem ódio, sem vingança, sem retaliação. Se dispomos de palavras suaves em qualquer língua por que não usá-las com nossos semelhantes? Por que não reconhecermos os nossos próprios erros antes de nos atracarmos com aquele que está ao nosso lado? O ódio inútil contribui para a involução do espírito e projeta na energia cósmica a semente da guerra. Cabe a cada um de nós segurá-lo. Cabe a cada um de nós analisá-lo e dissecá-lo na busca de sua compreensão. Uma vez compreendido, chegaremos sempre à conclusão de que ele é simplesmente inútil. E a sua inutilidade está no próprio fato de sua manifestação que conduz ao descontrole e enfatiza, no fundo, uma raiva profunda que sentimos de nós mesmos.

A IDIOTICE DA GUERRA

A IDIOTICE DA GUERRA

O atraso espiritual do ser humano chega a ser chocante e desesperador. Quando se imagina uma guerra em que homens armados atiram contra pessoas indefesas levando-as a uma morte prematura, desumana , absurda, percebemos que ainda estamos num estágio que nos faz remontar ao tempo das cavernas. Na verdade, acho que no tempo das cavernas ainda havia alguma justificativa para os atos violentos porque entrava em cena a fome, a necessidade imperiosa de se buscar alimentos para a sobrevivência. Mas agora! Qual o significado dessa matança interminável, dessa sede de vingança, desse derramamento de sangue inútil? A conquista de território, a ganância do poder, o que mais pode justificar tanto absurdo? O pior é a passividade dos que assistem calados as barbáries dentro de gabinetes com todo o conforto material e longe de qualquer perigo de ser atingido diretamente pelos bombardeios. A mídia, em todas as suas expressões, propala as notícias trágicas, mostrando cenas dos massacres e reuniões formais de executivos perfumados, dizendo frases bonitas e propondo planos irrealizáveis. Ainda se pode encontrar manifestações de protestos nas ruas de algumas cidades repelidas pelas polícias locais mas sem qualquer possibilidade de atingir corações e mentes dos responsáveis pela carnificina. Falta Deus para esses donos do poder. Eles são os deuses e é aqui mesmo na terra que eles pretendem conquistar tudo o que podem numa espécie de compulsão pelo poder, pelo dinheiro, pelo sexo, pela fama. São territórios que simbolizam bens que aumentarão suas fortunas pessoais; são armas que dão lucro a grandes fábricas que existem para inventar artefatos próprios para o aniquilamento de outros seres humanos. O Deus que parece não existir se manifesta justamente naquelas pessoas que se revoltam com tanta injustiça e que clamam por um basta para toda essa atrocidade. O fato é que o ser humano não evoluiu espiritualmente. Ele continua aliado ao ódio, à raiva, ao conflito para poder sobreviver compulsivamente. Eles continuam se apegando a símbolos falsos como bandeiras, exércitos, brasões e honrarias. O que se constata, de uma forma resumida, é que os grandes "jogadores de xadrez" estão afastados disso tudo, movimentando suas peças no interior de palácios luxuosos, cercados das melhores bebidas, das esplendorosas mulheres e dos prazeres mundanos mais sofisticados. Tudo o mais é descartável. Os soldadinhos de chumbo estão nos fronts de guerra dando tiros a esmo, mirando os “inimigos” que eles nem sabem bem o que fizeram para merecerem aquele final trágico. Os aviadores destemidos, em manobras fantásticas, miram povoados e lançam bombas que destroem, de uma só vez, alvos humanos desprotegidos. E, com isso, eles celebram vitória. Navios de guerra de última geração disparam mísseis e catapultam aviões e helicópteros, aumentando o campo de extermínio. E o número de mortos e de mutilados vai aumentando, dia a dia, enchendo hospitais superlotados e enfatizando a mediocridade humana nessa passagem efêmera aqui pela terra. Pobres de nós, todos mortais, todos sujeitos ao desaparecimento. Só nos resta a fé. A fé de que podemos ser muito mais do que assassinos e de que existe uma realidade paralela que nos salva dessa aflição. O nojo que toda essa realidade mórbida acarreta se dissolve na certeza de que a espiritualidade existe e que essa nossa revolta nada mais é do que fruto dela.

A Vaidade e as Formas Jurídicas

A VAIDADE E AS FORMAS JURÍDICAS

Adolfo Borges Filho (*)

Vaidade de vaidades, disse o Eclesiastes; vaidade de vaidades, tudo é vaidade.(Livro do Eclesiastes,1-2).

Inspirei-me em Foucault, mais precisamente no seu livro "A Verdade e as Formas Jurídicas", para batizar este artigo que nada mais é do que um convite à reflexão dirigido aos colegas da área jurídica. A reflexão teria como tema o excesso de formalismo que impregna determinados processos, formalismo esse caracterizado pela dissertação supérflua, pelas citações deslocadas e pelos malabarismos vocabulares inócuos. O processo se transforma, paulatinamente, num calhamaço de difícil manuseio e de cansativa leitura, enfeiando o Direito e emperrando a Justiça. A vaidade, na maior parte dos casos, serve de roupagem à chicana processual, tornando-se o principal instrumento das manobras ardilosas do "grande causídico" na defesa de seu cliente economicamente poderoso.

Não se pode negar a presença da estética no Direito. A petição escorreita, com dizeres incisivos e citações latinas, recheada de jurisprudência recente e retocada com doutrina atualizada, impressiona e é válida. Isso se aplica também ao parecer do Parquet e às decisões judiciais. O excesso de formalismo (ou de narcisismo) se materializa quando páginas e páginas são escritas como se cada uma delas representasse um quadro a óleo que merecesse contemplação e admiração. O processo se transforma em pinacoteca; infelizmente, de quadros falsos... A preocupação se volta para a forma; o conteúdo passa ao segundo plano porque efetivamente inexiste. Nesse "jogo estético" corre-se o risco de repetir o direito feudal...FOUCAULT descreve o sistema de provas vigente na Borgonha do século XI:

Havia em segundo lugar provas de tipo verbal. Quando um indivíduo era acusado de alguma coisa- roubo ou assassinato- devia responder a esta acusação com um certo número de fórmulas, garantindo que não havia cometido assassinato ou roubo. Ao pronunciar estas fórmulas podia-se fracassar ou ter sucesso.Em alguns casos pronunciava-se a fórmula e perdia-se. Não por haver dito uma inverdade ou por se provar que havia mentido, mas por não ter pronunciado a fórmula como devia. Um erro de gramática, uma troca de palavras invalidava a fórmula e não a verdade do que se pretendia provar. A confirmação de que ao nível da prova só se tratava de um jogo verbal, é que, no caso de um menor, de uma mulher ou de um padre, o acusado podia ser substituído por outra pessoa. Essa outra pessoa, que mais tarde se tornaria na história do direito o advogado, era quem devia pronunciar as fórmulas no lugar do acusado. Se ele se enganava ao pronunciá-las, aquele em nome de quem falava perdia o processo.1

O processo civil é o campo fértil para as manifestações narcísicas. Até porque o nosso Código de Processo Civil, se mal utilizado, pode levar o vaidoso ao clímax do formalismo. Quanto mais complicada a questão, quanto mais dinheiro estiver em disputa, maior número de folhas terá o feito. Abundam as citações, as digressões, as explicações, as interpretações, as empolações. Qualquer interlocutória merece um agravo. O mandado de segurança é outra opção estratégica. E o parecer encomendado a um grande jurista? Como diz Roberto Lyra Filho no seu grandioso livrinho "O que é Direito": Catar frases é um passatempo de quem só faz negócio com assinatura de avalista e vive procurando uma firma célebre e desprevenida para as suas promissórias. Um pensamento, uma filosofia é um organismo em movimento, uma resposta intelectual aos estímulos duma práxis e cada noção, conceito, proposição têm de ser, não pinçados mas inseridos no movimento da obra.2 Fato é que a decisão final parece inalcançável. Sofre aquele que possui o bom direito porque num determinado momento, cansado da espera e sem entender as explicações de seu advogado, numa atitude de defesa psicológica, começa a achar que não tem razão...O bom direito se perdeu no labirinto processual...

E por detrás dessa vaidade geralmente se esconde a astúcia (para não dizer malandragem) do chamado "bom advogado". Se o direito não beneficia seu cliente o melhor é encher o processo de folhas. Ele joga com o tempo de leitura e de contestação da parte contrária. Conta com o cansaço de um juiz assoberbado de trabalho que levará horas para digerir aquele emaranhado de postulações. E esse cansaço pode dar início aos célebres despachos procrastinatórios como o "diga o autor", "fale o réu sobre os documentos", "diga o MP", etc. E o MP, também assoberbado, pode dar início a requerimentos de diligências, também dilatórias...Pode ser que o juiz ou o membro do Parquet, agravando ainda mais o quadro protelatório, resolvam entrar no jogo da vaidade elaborando decisões e pareceres do tamanho de monografias, consumindo dias para trazê-los à vida e deixando atrasar outros feitos "menos importantes". TOURINHO FILHO, ao analisar os requisitos da sentença, faz a seguinte colocação: "Não se esqueçam os Juízes que a sentença é ato de autoridade e não dissertação de concurso, adverte Manzini, e, por isso mesmo, devem os Magistrados evitar as disquisições teóricas, rebuscadas, de citações inoportunas e discussões mais ou menos acadêmicas (Tratado, cit., v.4, p.493)."3 Trágico é quando essas autoridades encampam a mentira e se tornam co-autoras da injustiça.

Interessante notar que esse jogo estético é discriminatório e antidemocrático, concentrando-se, especialmente, nos processos que envolvem partes de poder aquisitivo alto. Tanto assim que em sede penal, onde a clientela predominante se constitui de pobres, predomina a concisão, a laconicidade e o desenfeite. E o processo se torna rápido e contundente. A vaidade está presente mas de molde a não atrapalhar o desenrolar do feito: ela é apenas cerimonial. Quando promotor criminal arrisquei o seguinte verso:

"O julgamento começou...
Não é o final,
aquele da Bíblia.
É o aniquilamento paulatino
de um desvalido.
Observem a pose do juiz, do promotor,
do advogado de defesa.
Que cenário bonito o recinto ostenta!
Bem acima do juiz pende um crucifixo,
aflito,
representando a grande contradição da
chamada Justiça.
O réu é um ladrão desconhecido,
que aguarda mais um veredicto.
Ele se "humilha" porque acredita,
na boa vontade do magistrado.
A humilhação é apenas aparente
porque do crime,
não se penitencia.
Toda aquela encenação não faz sentido.
Dos atores daquela peça,
o papel autêntico é o do ladrão.
Ele está sendo o que efetivamente pode ser.
Não teve opção porque sua "escolha" foi dirigida.
Ele aguarda a sentença
que significa simplesmente,
um atestado de permanência,
naquela existência...
imposta, pré-fabricada,
pelo esquema.
O Código Penal é a Bíblia
que ele conhece e respeita,
porque o define como "gente".
Juiz, Promotor, Advogado de Defesa,
cuidado com o Sistema!"

E o cuidado principal que o magistrado deve ter é o de não se transformar naquele "juiz asséptico" de que fala Zaffaroni e que a juíza Maria Lucia Karan muito bem conceituou: o juiz técnico, neutro, que decide de forma supostamente imparcial e, portanto, reproduz a desigualdade inerente ao direito da sociedade capitalista, sendo, consequentemente, também um primeiro passo no sentido da produção de uma jurisprudência comprometida com os interesses das classes capazes de construir a nova sociedade e com a perspectiva de realização dos direitos humanos.4

Quando o criminoso é do colarinho branco, a realidade processual se transforma; corrupção e tráfico de influência se fundem numa fórmula explosiva. Na fase investigatória, o sonho dourado dos advogados inescrupulosos é que a polícia se transforme na filial de seus próprios escritórios, produzindo as testemunhas de viveiro e as perícias de encomenda. É preciso afastar os policiais honestos e combater o poder investigatório e fiscalizatório do Ministério Público, distorcendo a própria Constituição Federal, para que a defesa criminosa não seja surpreendida com a descoberta da verdade. Na fase processual, propriamente dita, entram em cena as nulidades ,dando ensejo às preliminares de mérito. Os habeas corpus são impetrados no afã de se conseguir a liberdade provisória do "bacana injustiçado" ou mesmo o trancamento da ação penal por ausência de “justa causa”. E a punição que a sociedade espera vai se distanciando e, ao cabo de tudo, assoma como inexistente. Na maioria dos casos, a vaidade mascara a hipocrisia. Esse excesso de formalismo esconde, na verdade, uma mentira insustentável, uma hipocrisia abominável, própria do sistema capitalista selvagem ínsita ao conteúdo substancial da demanda. NIETZSCHE, em "Assim Falou Zaratrusta", escreveu:

E esta hipocrisia foi a pior que encontrei entre eles: que também aqueles que mandam fingem as virtudes daqueles que servem.
"Eu sirvo, tu serves, nós servimos" - assim reza também, aqui, a hipocrisia dos dominantes -e ai quando o primeiro senhor é somente o primeiro servidor!


Esse triste modelo de prática forense , que já se consolidou no nosso país e que em sede penal pode gerar a impunidade, colabora, de modo decisivo, para o descrédito da Justiça. A vaidade, traduzida no formalismo inútil, é apenas mais uma arma na suja batalha que o "bom advogado" trava para aumentar o espaço de poder de seu cliente endinheirado. A ética é posta de lado. O importante é "vencer". Jean-Marie Guéhenno, no seu ensaio "O Fim da Democracia", afirma que na sociedade capitalista, A profissionalização dos interesses dilui a política numa multiplicidade de oposições particulares.5 E O dever do advogado é sempre o de obter, em qualquer contrato, o máximo. A outra parte não entenderia se fosse diferente, e em alguns casos, o juiz poderia chegar a acusar de conluio e concorrência restrita qualquer empresa que não tenha forçado a obtenção de todos os seus direitos.6 Apresenta, em seguida, a seguinte crítica:

Na verdade, não existe nada de mais intolerável do que aquilo que os juristas chamam de "conflito de interesses" e crime de conivência, pois derrubam a máquina social: se o indivíduo pertence, ao mesmo tempo, a duas esferas de interesse, toda aquela equação de forças que tem por objetivo permitir o ótimo social é posta em cheque. Há de se obedecer, em cada ação na vida, a uma lógica unidimensional; Condorcet e Arrow, aliás, mostraram que essa é a única forma compatível com a agregação das preferências individuais.7


Comecei este artigo citando o Eclesiastes e o encerro com Fernando Pessoa, poeta maior de nossa língua e um grande incentivador de reflexões:

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

(*)Adolfo Borges Filho é Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e Professor de Direito Processual Penal da PUC/RJ.
1 Michel Foucault, "A Verdade e as Formas Jurídicas",pág.46,"Departamento de Letras da PUC/RJ," 1991.
2 Roberto Lyra Filho, "O que é Direito", pág.111, "Editora Brasiliense", 1982.
3 Tourinho Filho, "Processo Penal", 4º vol., pág. 181, "Editora Saraiva", 1990.
4 Maria Lúcia Karam, "De Crimes, Penas e Fantasias", pág.111, "Editora Luam", 1991.
5 Jean-Marie Guéhenno, "O Fim da Democracia", pág. 35, "Editora Bertrand Brasil S.A.", 1994.
6 Ibidem, pág. 36.
7 Ibidem, pág. 36.